terça-feira, 29 de março de 2011

Teoria das Instruções da Avestruz X Papéis Sociais (Günther Jakobs)



   Podemos iniciar o estudo dizendo que tratam-se de teorias antagônicas se comparadas, que refletem diretamente na imputação do fato criminoso ao agente.
     
   Iremos começar a exposição pela Teoria das Instruções da Avestruz também chamada de Teoria da Cegueira Deliberada ou ainda Ostrich Instructions, tal teoria surgiu nos Estados Unidos, quando a Suprema Corte julgou o caso de um vendedor de carros onde todos eram de origem ilícita, ou seja, provenientes de furtos e roubos, porém ao longo da instrução penal não ficou comprovado se o agente tinha ou não conhecimento da origem dos veículos.

   Essa teoria existe quando  o agente não quer saber a origem ilícita de bens, direitos e valores com o intuito de auferir vantagem, tal como um avestruz que enfia sua cabeça na terra para manter a inocência.

   Por tanto exige-se que o agente deliberadamente não procure saber da origem ilícita dos bens, direitos e valores, porem aqui atrevo-me acrescentar que tratando-se de bens de origem ilícita, não há problemas em enquadrar a conduta no crime de receptação culposa, constante do artigo 180 §3  do nosso Código Repressor Pátrio, porém, o intuito da teoria é enquadrar como doloso, isso implicaria em condenadar algumas condutas que se consideradas culposas não teriam tipificação legal, como por exemplo no crime de "lavagem" de dinheiro, em que podemos ilustrar com um casa real, o furto do Banco Central de Fortaleza em 2005, quando uma quadrilha através de um túnel conseguiu subtrair do referido banco uma quantia de  R$ 165.000.000 e no dia seguinte foram a uma concessionária e gastaram um R$1.000.000 em dinheiro adquirindo 11 automóveis.

   Em primeiro grau os réus foram condenados, o juiz entendeu pela aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada, uma vez que os réus fizeram-se de cegos para obterem lucro, porem em segunda instância os réus foram absolvidos.

   Outro caso em que também foi reconhecida a Teoria da Cegueira Deliberada nos Estados Unidos ficou famoso como “In re Aimster Copyright Litigation”, no qual os réus discutiam que sua tecnologia de troca de arquivos esteve projetada de tal forma que não tiveram nenhuma maneira de monitorar o conteúdo de arquivos trocados, alegando a incapacidade de controlar as atividades dos utilizadores. Sustentando assim, que não poderiam estar contribuindo para a violação de direitos autorais pelos usuários. O Tribunal considerou que esta cegueira era voluntária por parte dos réus.
     
   No Brasil temos também precedentes da aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada em casos de corrupção eleitoral:

CORRUPÇÃO ELEITORAL. ELEIÇÕES 2006. FORNECIMENTO CONTÍNUO DE SOPA, CESTAS BÁSICA E PATROCÍNIO DE CURSO. PROPÓSITO DE VOTO EM CANDIDATO À REELEIÇÃO A DEPUTADO ESTADUAL. PERÍODO ELEITORAL. FILANTROPIA. DESVIRTUAMENTO. OPORTUNISTO ELEITOREIRO. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. FATOS CONHECIDOS E PROVADO REVELADORES DO ILÍCITO. ARTICULAÇÃO À PROVA ORAL. INTELIGÊNCIA DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, ARTIGO 239. PRESCINDÊNCIA DE PROVA DIRETA QUANTO À PRÁTICA ILÍCITA.. MANOBRAS SUB-RECEPTÍCIAS E “MISE-EN-SCÈNE”. DELIMITAÇÃO DE AUTORIA: CRITÉRIO DO DOMÍNIO DO FATO. PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO. DOLO CONFIGURADO. TEORIA DA CEGUEIRA DELIBRADA. CRIME FORMAL. ACOLHIMENTO DA PRETENSÃO PUNITIVA ESTATAL. CONDENAÇÃO. CONTINUIDADE DELITIVA. REGIME ABERTO. PENAS SUBSTITUTIVAS DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE E PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA. MULTA. I- Corrupção eleitoral comprovada: distribuição contínua de sopa, cestas básicas e patrocínio de cursos, durante o período eleitoral a troca de votos. II- Materialidade e autoria extraídas do acervo probatório, documentos e testemunhas. Corroboração por fatos conhecidos e provados. Inteligência do artigo 239 do Estatuto Processual Penal, subsidiariamente aplicável. III- Delira do razoável exigir, sempre e sempre, prova direta – testemunhos, registro audiovisual, e.g. - acerca do cometimento de corrupção eleitoral pelo próprio candidato (CE, art. 299). Os agentes, por si ou interpostas pessoas, atuam de modo sub-reptício, dissimuladamente, sem deixar vestígios cabais. Baralhamento da prática vedada a outras atividades de campanha isoladamente permitidas. Do “misere-in-scène”, da encenação, o julgador há de extrair as nuanças permissivas ao descortino do verdadeiro escopo da manobra e de quem esteja envolvido. IV- A atribuição de autoria prescinde de comprovação quanto ao engajamento pessoal, direto, do réu/candidato, principal beneficiário, na prática de corrupção eleitoral. Domínio finalístico sobre as manobras espúrias. Critério do domínio do fato. É autor quem executa, pessoalmente, o verbo típico e quem, sem realizá-lo diretamente, vale-se de outrem para tanto. V- “Dolos directus” presente. Imputação viável, no mínimo, a título de “dolos eventualis” (CP, art. 18, I, 2ª parte): mesmo seriamente considerando a possibilidade de realização do tipo legal, os agentes não se detiveram, conformando-se ao resultado. Teoria da “cegueira deliberada” (“willful blindness” ou “conscious avoidance doctrine”). VI- A corrupção eleitoral, em qualquer de suas modalidades, inclui-se no rol dos crimes formais. Para configurá-la, “basta o dano potencial ou o perigo de dano ao interesse jurídico protegido, cuja segurança fica, dessarte, pelo menos, ameaçada”, segundo Nelson Hungria. VII- A censura penal não decorre da prática de filantropia , de atos de benemerência, de beneficência. É consectário, sim, de desvirtuamento, consistente em oportunismo eleitoreiro: o propósito de obter voto à custa da miséria alheia, sob o fornecimento de “sopão”, cestas básicas, cursos e congêneres. VIII- Pretensão punitiva acolhida. Condenação de ambos os réus. Continuidade delitiva. Regime aberto. Penas substitutivas de prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária. Multa. IX- Recurso ministerial provido, à unanimidade. (Tribunal Regional Eleitoral de Rondônia, Apelação Criminal nº 89, Relator Élcio Arruda, 09/05/08).

   Reconheceu-se a possibilidade de aplicação, ao menos, do dolo eventual ao se considerar a possibilidade de realização do tipo legal. A cegueira deliberada está no fato dos candidatos à eleição cerrarem os olhos à ilicitude da distribuição de bens como meio ao aliciamento dos votos.

   Podemos concluir que diante tal teoria o agente responderá no mínimo por dolo eventual ao se fazer de cego, possibilitando condenações por inúmeros crimes que não preveem modalidade culposa (como é o caso da "lavagem" de dinheiro e corrupção eleitoral), em tempos de extremo egoísmo e de super valorização do capital, nada mais justo que as pessoas procurem pensar menos no lucro que irão obter e pensem mais em colaborar com as autoridades.





   Em sentido contrário temos o pensamento de Jakobs que através da  teoria da imputação objetiva desenvolve sua sistemática com base no conceito de papel social. Este se utiliza da conotação social para delimitar as balizas de imputação (lembrando que existe outra vetente para a teoria da imputação objetiva, desenvolvida pelo também alemão Claus Roxin).

   Jakobs utiliza-se da incidência do indivíduo no contexto da sociedade, nas palavras do próprio Jakobs, os papéis sociais podem ser divididos como: “um sistema de posições definidas de modo normativo, ocupado por indivíduos intercambiáveis; trata-se, portanto de uma instituição que se orienta com base nas pessoas” (JAKOBS, 2007, p.22).

   O doutrinador tenta tornar objetivo o comportamento dos indivíduos em um contexto social, ou seja, todo indivíduo tem certos deveres de conduta esperada pelos demais que sejam cumpridas na medida de sua posição como portador de um papel.

   Podemos dizer que para se imputar um crime a alguém exige-se que este esteja violando seu papel na sociedade, prescinde-se do que este sabe de fato, não se analisa o elemento subjetivo do agente se este foge ao seu papel inserido no grupo. Nesta direção, Guilherme Guimarães Feliciano preleciona acerca do papel considerado:

“Seu rol de deveres e obrigações estabelece pautas de comportamento para a administração de riscos sociais: comportando-se dentro desses parâmetros, o indivíduo não defrauda expectativas e, por conseguinte, não lesa ou expõe a perigo de lesão bens juridicamente tuteladas”(FELICIANO, 2005, p.94-95).
     
   Para melhor entendimento iremos exemplificar:  Ex1: Um taxista que mesmo sabendo das intenções homicídas do passageiro, leva-o para encontrar a vítima, de acordo com a visão de Jakobs o taxista não poderá responder por crime alguma, mesmo este sabendo do homicídio que iria acontecer, uma vez que não se espera de um taxista que saiba as intenções de seu transportado, estando ele no papel de taxista não cabe a ele tentar impedir o algoz de encontrar-se com a vítima.  Ex2: Vendedor de armas autorizado que em seu papel de vender armas para quem esteja habilitado com os documentos necessários, vende uma espingarda a seu vizinho que sabe ter sérios problemas mentais (porém com porte de arma de fogo), não cabe ao vendedor questionar a sanidade de seu consumidor, ou seja, de nada vale o elemento subjetivo do caso concreto, por tanto não importa o conhecimento da insanidade por parte deste vendedor. EX3: O garçom que apesar de ver o cozinheiro envenenando a comida de um dos clientes nada faz, pelo contrário, serve a comida como se nada soubesse.

   Lembrando que este comportamento esperado do agente pode ser ex lege (no caso do taxista e do garçom) ou normatizado pelo Estado (caso da venda de armas).

   Enquanto a Teoria das Instruções da Avestruz traz uma obrigação de cuidado por parte do agente, a Teoria dos Papéis Sociais traz uma extremada carga de individualísmo e de egoísmo.



Bibliografia
FELICIANO, Guilherme Guimarães. Teoria da Imputação Objetiva no Direito Penal Ambiental Brasileiro. São Paulo: LTr, 2005.
JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no Direito Penal, tradução de André Luís Callegari, São Paulo: RT, 2007.

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