quarta-feira, 30 de março de 2011

Lesões Produzidas por Projéteis de Arma de Fogo (PAF)


     Depois de exposições sobre criminologia contemporânea, direito penal e processo penal, resolvi escrever um pouco sobre medicina legal.

    Antes de mais nada vamos conceituar a ciência em questão, nas palavras de Hélio Gomes: "Medicina Legal é o conjunto de conhecimentos médicos e paramédicos destinados a servir ao Direito, cooperando na elaboração, auxiliando a interpretação e colaborando na execução dos dispositivos legais atinentes ao seu campo de ação de medicina aplicada"

    Na presente exposição iremos falar sobre Traumatologia Forense, mais especificamente sobre lesões produzidas por projéteis de arma de fogo (PAF).

    É de suma importância conceituar a expressão "arma de fogo", Genericamente, arma é todo o instrumento destinado ao ataque e à defesa. Para a Criminalística, arma de fogo é todo o engenho constituído de um conjunto de peças com finalidade de lançar um projétil no espaço pela força de propulsão (gases de pólvora).

    Aqui por curiosidade colocaremos o desenho de um revólver calibre 38 com o nome de suas partes:




    Ainda na parte introdutória do estudo, podemos classificar as armas de fogo em:

   Quanto a dimensão: elas podem ser portáteis, podem ser transportadas e acionadas por uma única pessoa, podem ser de cano longo ou cano curto; e as não potáteis ou coletivas que não podem ser utilizadas por uma única pessoa, como por exemplo as metralhadoras pesadas.
    
    Quanto ao funcionamento: podem ser automáticas  que possuem funcionamento e disparos automáticos, ou seja, apenas um único acionar do gatilho dispara todo o pente; semi-automáticas são aquelas que tem funcionamento automático porem o disparo é manual; e por último as armas de repetição cada disparo depende de uma operação completa de colocação de munição, de acionamento do disparo e de retirada da cápsula para novo municiamento.

    Quanto ao calibre (diâmetro interno do cano da arma, tomado na sua boca, medido entre dois cheios. Cheio, por sua vez, é o espaço que separa uma raia da outra, Entretanto, há armas que não possuem raias, ou seja, armas de cano liso, como, por exemplo, as armas de caça. Nessas armas o calibre é calculado em peso, ou seja, pelo número de projéteis esféricos necessários para pesarem uma libra. Uma arma será de calibre 36 se sua carga constar de 36 projéteis iguais pesando juntos uma libra). Classifica-se o calibre em real e nominal. Será real o calibre medido diretamente na boca do cano da arma, através de um instrumento chamado paquímetro. O calibre nominal é indicado pelo fabricante da arma, excede ligeiramente o calibre real. 

     Para melhor explicarmos as chamadas raias, estas são pequenos sulcos helicoidais que imprimem ao projétil movimento de rotação em seu próprio eixo, aumentando a precisão, este raiamento deixa marcas de de identidade do cano no próprio projétil, funcionando como uma "impressão digital" da arma que foi disparado o tiro basta fazer o exame de comparação da arma com o projétil.

    Passando agora as lesões propriamente ditas, podemos classificar as lesões produzidas por PAF como lesões produzidas por ação perfuro-contundente, ou seja, ao atuarem sobre o alvo eles perfuram-no e o contundem (está incluída dentre as chamadas ações mistas).

     Na prática dificilmente encontra-se um ferida perfuro-contundente que não tenha sido causada por um  PAF, porem nos livros encontramos alguns exemplos como a ponteira de um guarda chuva que seja acionada contra o corpo humano.

    Na arma de fogo, o instrumento vulnerante é representado pelo projétil ("bala") ou pelos grãos de chumbo (também chamado de projéteis múltiplos)

     Podemos dividir os ferimentos produzidos por PAF em ferimentos de entrada e de saída.

    Quanto ao orifício de entrada do projétil, podemos classifica-lo como regular, invaginado (retraído dentro do corpo), proporcional ao projétil e com orlas e zonas. Importante lembrar que no crânio o orifício de entrada terá seus bordos evertidos devido à hipertensão craniana e pressão dos vasos internos do crânio.

    Podemos dividir as orlas em:

    Orla de enxugo, acontece pois ao passar pelo cano da arma o projétil se cobre de resíduos, e ao atravessar a pele ele se "limpa", enxugando-se nas bordas da ferida

    Orla de contusão, antes de atravessar a pele o projétil a deprime, exibindo uma pequena orla escoriada de coloração escura, nos tiros de longe a orla de contusão é o elemento de maior valor para definir a trajetória do projétil.

    Por sua vez as zonas são:

    Zona de tatuagem, ocorre pela incrustação de grânulos e fragmentos de pólvora NÃO combusta pelo disparo na região atingida, essa "tatuagem" como o próprio nome diz, NÃO é possível ser removida.

    Zona de esfumaçamento (tatuagem falsa) ou negro de fumo, cria-se pelo simples fato de pólvora combusta e outras impurezas, pode ser removida facilmente.

    Zona de queimadura é produzida pelos gases superaquecidos, que queimam a epiderme.

   Cumpre salientar que as chamadas "zonas" só estarão presentes nos tiros a curta distância, porem nem sempre os tiros a curta distância apresentam tais sinais, como por exemplo, uma execução em que um travesseiro é colocado entre a arma e o corpo.


    Nos tiros encostados a pele a lesão depende da estrutura óssea embaixo do tecido e a força em que o cano está encostado à pele. Quando existe uma estrutura óssea embaixo do tecido (exemplo o crânio) encontramos a chamada "boca de mina de Hoffmann", devido a expansão de gases entre a calota crâniana e o couro cabeludo, provoca a ruptura irregular, de dentro para fora. É possível que fique na pele da vítima a marca da boca do cano e da mola recuperadora, conhecida como sinal de Werkgaertner.

      Importante ressaltar que alguma armas possuem o chamado sistema de compensação de recuo, apresentando microfuros na parte posterior do orifício da saída do projétil, permitindo assim a saída dos gases produzidos pela combustão da pólvora, nestes casos as características das lesões com o cano próximo são modificadas. 

      Quanto ao orifício de saída do projétil podemos dizer que ele é geralmente maior que o de entrada, é dilacerado (lembrando que o de entrada é regular) , é evertido, desproporcional ao projétil e não apresenta orlas e nem zonas, aqui fazemos a observação de que um mesmo projétil pode fazer mais de um orifício de saída devido a formação de projéteis secundários (fragmentação do projétil durante a entrada ou fragmentação do tecido ósseo atingido pelo projétil primário).

    Nesse momento fazerei uma pequena ilustração do corpo de um projétil:


      Para concluir o estudo podemos responder a seguinte questão:

    Os projéteis de alta velocidade (acima de 2.000 pés por segundo) tornam o potencial de lesão maior ?
     Sim, quanto maior a velocidade maior a trasmissão de energia cinética transmitida ao alvo, e maior a lesão produzida. Analisando tais lesões chega-se a encontrar formação de cavidades 50 vezes o diâmetro original do projétil. Como exemplo de PAFs de alta velocidade temos o fuzil AR-15, AK-47, ou, mesmo, FAL 7,62.


FAL 7,62
BIBLIOGRAFIA

ANCILOTTI, Roger; DOUGLAS, William; CALHAU, Lélio Braga; GRECO,Rogério. Medicina legal - À luz do direito penal e do direito processual penal, Niterói - RJ : Editora Impetus

GOMES, Hélio. Medicina Legal. 31. ed. Rio de Janeiro - RJ : Freitas Bastos



terça-feira, 29 de março de 2011

Teoria das Instruções da Avestruz X Papéis Sociais (Günther Jakobs)



   Podemos iniciar o estudo dizendo que tratam-se de teorias antagônicas se comparadas, que refletem diretamente na imputação do fato criminoso ao agente.
     
   Iremos começar a exposição pela Teoria das Instruções da Avestruz também chamada de Teoria da Cegueira Deliberada ou ainda Ostrich Instructions, tal teoria surgiu nos Estados Unidos, quando a Suprema Corte julgou o caso de um vendedor de carros onde todos eram de origem ilícita, ou seja, provenientes de furtos e roubos, porém ao longo da instrução penal não ficou comprovado se o agente tinha ou não conhecimento da origem dos veículos.

   Essa teoria existe quando  o agente não quer saber a origem ilícita de bens, direitos e valores com o intuito de auferir vantagem, tal como um avestruz que enfia sua cabeça na terra para manter a inocência.

   Por tanto exige-se que o agente deliberadamente não procure saber da origem ilícita dos bens, direitos e valores, porem aqui atrevo-me acrescentar que tratando-se de bens de origem ilícita, não há problemas em enquadrar a conduta no crime de receptação culposa, constante do artigo 180 §3  do nosso Código Repressor Pátrio, porém, o intuito da teoria é enquadrar como doloso, isso implicaria em condenadar algumas condutas que se consideradas culposas não teriam tipificação legal, como por exemplo no crime de "lavagem" de dinheiro, em que podemos ilustrar com um casa real, o furto do Banco Central de Fortaleza em 2005, quando uma quadrilha através de um túnel conseguiu subtrair do referido banco uma quantia de  R$ 165.000.000 e no dia seguinte foram a uma concessionária e gastaram um R$1.000.000 em dinheiro adquirindo 11 automóveis.

   Em primeiro grau os réus foram condenados, o juiz entendeu pela aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada, uma vez que os réus fizeram-se de cegos para obterem lucro, porem em segunda instância os réus foram absolvidos.

   Outro caso em que também foi reconhecida a Teoria da Cegueira Deliberada nos Estados Unidos ficou famoso como “In re Aimster Copyright Litigation”, no qual os réus discutiam que sua tecnologia de troca de arquivos esteve projetada de tal forma que não tiveram nenhuma maneira de monitorar o conteúdo de arquivos trocados, alegando a incapacidade de controlar as atividades dos utilizadores. Sustentando assim, que não poderiam estar contribuindo para a violação de direitos autorais pelos usuários. O Tribunal considerou que esta cegueira era voluntária por parte dos réus.
     
   No Brasil temos também precedentes da aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada em casos de corrupção eleitoral:

CORRUPÇÃO ELEITORAL. ELEIÇÕES 2006. FORNECIMENTO CONTÍNUO DE SOPA, CESTAS BÁSICA E PATROCÍNIO DE CURSO. PROPÓSITO DE VOTO EM CANDIDATO À REELEIÇÃO A DEPUTADO ESTADUAL. PERÍODO ELEITORAL. FILANTROPIA. DESVIRTUAMENTO. OPORTUNISTO ELEITOREIRO. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. FATOS CONHECIDOS E PROVADO REVELADORES DO ILÍCITO. ARTICULAÇÃO À PROVA ORAL. INTELIGÊNCIA DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, ARTIGO 239. PRESCINDÊNCIA DE PROVA DIRETA QUANTO À PRÁTICA ILÍCITA.. MANOBRAS SUB-RECEPTÍCIAS E “MISE-EN-SCÈNE”. DELIMITAÇÃO DE AUTORIA: CRITÉRIO DO DOMÍNIO DO FATO. PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO. DOLO CONFIGURADO. TEORIA DA CEGUEIRA DELIBRADA. CRIME FORMAL. ACOLHIMENTO DA PRETENSÃO PUNITIVA ESTATAL. CONDENAÇÃO. CONTINUIDADE DELITIVA. REGIME ABERTO. PENAS SUBSTITUTIVAS DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE E PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA. MULTA. I- Corrupção eleitoral comprovada: distribuição contínua de sopa, cestas básicas e patrocínio de cursos, durante o período eleitoral a troca de votos. II- Materialidade e autoria extraídas do acervo probatório, documentos e testemunhas. Corroboração por fatos conhecidos e provados. Inteligência do artigo 239 do Estatuto Processual Penal, subsidiariamente aplicável. III- Delira do razoável exigir, sempre e sempre, prova direta – testemunhos, registro audiovisual, e.g. - acerca do cometimento de corrupção eleitoral pelo próprio candidato (CE, art. 299). Os agentes, por si ou interpostas pessoas, atuam de modo sub-reptício, dissimuladamente, sem deixar vestígios cabais. Baralhamento da prática vedada a outras atividades de campanha isoladamente permitidas. Do “misere-in-scène”, da encenação, o julgador há de extrair as nuanças permissivas ao descortino do verdadeiro escopo da manobra e de quem esteja envolvido. IV- A atribuição de autoria prescinde de comprovação quanto ao engajamento pessoal, direto, do réu/candidato, principal beneficiário, na prática de corrupção eleitoral. Domínio finalístico sobre as manobras espúrias. Critério do domínio do fato. É autor quem executa, pessoalmente, o verbo típico e quem, sem realizá-lo diretamente, vale-se de outrem para tanto. V- “Dolos directus” presente. Imputação viável, no mínimo, a título de “dolos eventualis” (CP, art. 18, I, 2ª parte): mesmo seriamente considerando a possibilidade de realização do tipo legal, os agentes não se detiveram, conformando-se ao resultado. Teoria da “cegueira deliberada” (“willful blindness” ou “conscious avoidance doctrine”). VI- A corrupção eleitoral, em qualquer de suas modalidades, inclui-se no rol dos crimes formais. Para configurá-la, “basta o dano potencial ou o perigo de dano ao interesse jurídico protegido, cuja segurança fica, dessarte, pelo menos, ameaçada”, segundo Nelson Hungria. VII- A censura penal não decorre da prática de filantropia , de atos de benemerência, de beneficência. É consectário, sim, de desvirtuamento, consistente em oportunismo eleitoreiro: o propósito de obter voto à custa da miséria alheia, sob o fornecimento de “sopão”, cestas básicas, cursos e congêneres. VIII- Pretensão punitiva acolhida. Condenação de ambos os réus. Continuidade delitiva. Regime aberto. Penas substitutivas de prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária. Multa. IX- Recurso ministerial provido, à unanimidade. (Tribunal Regional Eleitoral de Rondônia, Apelação Criminal nº 89, Relator Élcio Arruda, 09/05/08).

   Reconheceu-se a possibilidade de aplicação, ao menos, do dolo eventual ao se considerar a possibilidade de realização do tipo legal. A cegueira deliberada está no fato dos candidatos à eleição cerrarem os olhos à ilicitude da distribuição de bens como meio ao aliciamento dos votos.

   Podemos concluir que diante tal teoria o agente responderá no mínimo por dolo eventual ao se fazer de cego, possibilitando condenações por inúmeros crimes que não preveem modalidade culposa (como é o caso da "lavagem" de dinheiro e corrupção eleitoral), em tempos de extremo egoísmo e de super valorização do capital, nada mais justo que as pessoas procurem pensar menos no lucro que irão obter e pensem mais em colaborar com as autoridades.





   Em sentido contrário temos o pensamento de Jakobs que através da  teoria da imputação objetiva desenvolve sua sistemática com base no conceito de papel social. Este se utiliza da conotação social para delimitar as balizas de imputação (lembrando que existe outra vetente para a teoria da imputação objetiva, desenvolvida pelo também alemão Claus Roxin).

   Jakobs utiliza-se da incidência do indivíduo no contexto da sociedade, nas palavras do próprio Jakobs, os papéis sociais podem ser divididos como: “um sistema de posições definidas de modo normativo, ocupado por indivíduos intercambiáveis; trata-se, portanto de uma instituição que se orienta com base nas pessoas” (JAKOBS, 2007, p.22).

   O doutrinador tenta tornar objetivo o comportamento dos indivíduos em um contexto social, ou seja, todo indivíduo tem certos deveres de conduta esperada pelos demais que sejam cumpridas na medida de sua posição como portador de um papel.

   Podemos dizer que para se imputar um crime a alguém exige-se que este esteja violando seu papel na sociedade, prescinde-se do que este sabe de fato, não se analisa o elemento subjetivo do agente se este foge ao seu papel inserido no grupo. Nesta direção, Guilherme Guimarães Feliciano preleciona acerca do papel considerado:

“Seu rol de deveres e obrigações estabelece pautas de comportamento para a administração de riscos sociais: comportando-se dentro desses parâmetros, o indivíduo não defrauda expectativas e, por conseguinte, não lesa ou expõe a perigo de lesão bens juridicamente tuteladas”(FELICIANO, 2005, p.94-95).
     
   Para melhor entendimento iremos exemplificar:  Ex1: Um taxista que mesmo sabendo das intenções homicídas do passageiro, leva-o para encontrar a vítima, de acordo com a visão de Jakobs o taxista não poderá responder por crime alguma, mesmo este sabendo do homicídio que iria acontecer, uma vez que não se espera de um taxista que saiba as intenções de seu transportado, estando ele no papel de taxista não cabe a ele tentar impedir o algoz de encontrar-se com a vítima.  Ex2: Vendedor de armas autorizado que em seu papel de vender armas para quem esteja habilitado com os documentos necessários, vende uma espingarda a seu vizinho que sabe ter sérios problemas mentais (porém com porte de arma de fogo), não cabe ao vendedor questionar a sanidade de seu consumidor, ou seja, de nada vale o elemento subjetivo do caso concreto, por tanto não importa o conhecimento da insanidade por parte deste vendedor. EX3: O garçom que apesar de ver o cozinheiro envenenando a comida de um dos clientes nada faz, pelo contrário, serve a comida como se nada soubesse.

   Lembrando que este comportamento esperado do agente pode ser ex lege (no caso do taxista e do garçom) ou normatizado pelo Estado (caso da venda de armas).

   Enquanto a Teoria das Instruções da Avestruz traz uma obrigação de cuidado por parte do agente, a Teoria dos Papéis Sociais traz uma extremada carga de individualísmo e de egoísmo.



Bibliografia
FELICIANO, Guilherme Guimarães. Teoria da Imputação Objetiva no Direito Penal Ambiental Brasileiro. São Paulo: LTr, 2005.
JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no Direito Penal, tradução de André Luís Callegari, São Paulo: RT, 2007.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Direito Penal do Inimigo - Günther Jakobs



Antes de abordamos diretamente o pensamento de Jakobs devemos observar em que o autor se inspirou para defender tais idéias.
Sobre Günther Jakobs podemos dizer que o criminalista Alemão é tido como um dos mais brilhantes discípulos de Welzel (autor da teoria finalista que deslocou culpa e dolo da culpabilidade para a tipicidade fazendo que esta possua elementos objetivos e subjetivos). Foi o criador do funcionalismo sistêmico, sustentando que o Direito Penal tem a função principal de tutelar a norma e somente em segundo plano os bens jurídicos em contrariedade ao princípio da ofensividade.

 Günther Jakobs

Jakobs baseia-se em alguns precedentes jusfilosóficos, primeiramente Rosseau, que afirma que qualquer malfeitor que ataque os direitos sociais não faz mais parte da engrenagem Estatal, posto que se encontra em guerra com este, como demonstra a sanção pronunciada contra o malfeitor. O pensamento do filósofo é traduzido com clareza pela expressão “... ao culpado se lhe faz morrer mais como inimigo que como cidadão” (ROSSEAU, 2008).
O filósofo Kant também demonstra este pensamento, quando em sua obra admite reações "hostis" contra seres humanos que, de modo persistente, se recusassem a participar da vida "comunitário-legal", pois estaria este afastado do Estado e das garantias que este dispõe, não podendo ser considerado uma "pessoa" o indivíduo que ameaça alguém reiteradamente.
Vale colocar aqui palavras do próprio Jakobs:

Quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado não ‘deve’ tratá-lo, como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas (JAKOBS, 2005, p.42, grifo nosso).

O autor já prevendo as possíveis críticas continua:

Portanto, seria completamente errôneo demonizar aquilo que aqui se tem denominado Direito penal do inimigo. Com isso não se pode resolver o problema de como tratar os indivíduos que não permitem sua inclusão em uma constituição cidadã. Como já se tem indicado, Kant exige a separação deles, cujo significado é de que deve haver proteção frente aos inimigos (JAKOBS, 2005, p.42) 

Do ponto de vista de tais filósofos podemos concluir que o Estado é um acordo de indivíduos, como um contrato, e a quebra deste se daria por determinadas atitudes do cidadão, o delito seria uma transgressão contratual, o que o tornaria um inimigo, perdendo as garantias que  outrora possuía.
Ainda citando os antigos pensadores, podemos observar Platão, que em seus Diálogos, faz referencia ao “inimigo” de forma implícita, ao aduzir que Zeus quando incumbira Hermes de distribuir a justiça e a moral entre os homens da terra, deixou evidente que todo homem que não participasse da moral e da justiça deveria ser eliminado como se fosse uma doença.
Vemos então que o chamado Direito Penal do Inimigo não é um Direito propriamente dito e sim um “não” Direito uma vez que o cidadão perde suas garantias individuais.
Como bem mencionado por Eduardo Luiz Santos Cabette e Eduardo Camargo Loberto, embora Rosseau tenha proposto ao inimigo um tratamento diferenciado, não foi tão amplo como Jakobs em sua teoria, sendo que aquele se restringe a limites de guerra formalmente declarada, e Jakobs (apesar de não admitir que sua proposta seja mais ampla) admite essa aplicação até mesmo fora do estado de guerra, ou seja, fora de um Estado de Exceção, bastando a periculosidade do agente. (CABETTE; LOBERTO, disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11142> artigo elaborado em 03/2010)
A expressão Direito Penal do Inimigo foi utilizada por Jakobs pela primeira vez em 1985, mas seu desenvolvimento teórico e filosófico somente foi levado a cabo a partir da década de 1990.
Jakobs contrapõe duas tendências opostas no Direito Penal, as quais convivem no mesmo plano jurídico, embora sem uma distinção absolutamente pura: o Direito Penal do Inimigo e o Direito Penal do Cidadão. Ao primeiro, cumpre a tarefa de garantir a vigência da norma como expressão de uma determinada sociedade (prevenção geral positiva). Ao outro, cabe a missão de eliminar perigos.
O Direito Penal do Inimigo nada mais é que um Direito Penal do Autor e três são as características do Direito Penal do Inimigo: 1-Um adiantamento do “jus puniendi”, ou seja, uma punição de atos preparatórios do crime, fatos antecedentes a lesão do bem jurídico um adiantamento da intervenção estatal no “iter criminis” 2-As penas cominadas são extremamente severas e desproporcionais até mesmo para os crimes obstáculo 3-As garantias processuais são relativizadas e muitas vezes suprimidas.
No campo processual podemos destacar:

1) a prisão cautelar, medida utilizada no curso de um processo, funda-se no combate a um perigo (de fuga, de cometimento de outros crimes, de alteração das provas etc.), não sendo considerada uma restrição a liberdade de caráter excepcional, em muitos casos tornando-se excepcional a sua não utilização.
2) medidas processuais restritivas de liberdades fundamentais, como a interceptação das comunicações telefônicas, tais medidas são realizadas de forma rápida e pouco burocrática, tornando quebras de sigilos cotidianas no curso da investigação
3) possibilidade de decretação da incomunicabilidade de presos perigosos etc. 
Como bem menciona um dos mais brilhantes penalistas da atualidade E. Raúl Zaffaroni:

[...] a essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o Direito lhe nega sua condição de pessoa. Ele só é considerado sob o aspecto de ente perigoso ou daninho. Por mais que a idéia seja matizada, quando se propõe estabelecer a distinção entre cidadãos (pessoa) e inimigos (não pessoa) faz-se referencia a seres humanos que são privados a certos Direitos individuais, motivo pelo qual deixaram de ser considerados pessoas [...]. (ZAFFARONI, 2007, p.18 )

Para Jakobs, inimigo é todo aquele que reincide persistentemente na prática de delitos ou que comete crimes que ponham em risco a própria existência do Estado, ou seja, o agente considerado perigoso simplesmente, aquele que não consegue provar ao Poder Público que sua liberdade não é um risco.
 Em relação ao conceito de inimigo, Jakobs explica este status de inimigo da seguinte maneira: “aquele que pretende ser tratado como pessoa deve dar em troca uma garantia cognitiva de que vai se comportar como pessoa. Se não existir essa garantia ou se ela for expressamente negada, o direito penal passa a ser uma reação da sociedade ante o ato de um de seus membros para ser uma reação contra um inimigo. Isso há de implicar que tudo está permitido, a incluir uma ação desmedida". (JAKOBS, 2003, p.138)
Podemos sustentar que os paradigmas preconizados pelo Direito penal do Inimigo mostram aos seus inimigos toda incompetência estatal ao reagir com irracionalidade diferenciando o cidadão normal do outro. 
O fato é que as intenções  de Jakobs foram as mais nobres possíveis, quis o autor  atentar para a invasão de leis antigarantistas aos ordenamentos jurídicos mundiais, leis as quais vieram para restringir Direitos fundamentais que foram objetos de séculos de lutas.
Porém, as soluções para estes problemas não foram bem aceitas pela doutrina de modo geral,  a contenção de um “mal maior” não poderá ser feita através de um “mal menor”, afirmando que se a expansão de um modelo autoritário não tem sido contida por uma manifestação em seu sentido contrário, de maneira alguma ceder terreno irá solucionar o problema.
Outro impecílio que encontramos para a teoria é o fato de não existir um "inimigo" determinado, ou seja, quem terá suas garantias suprimidas ? quem decidirá a identidade do inimigo ? Hitller na Alemanha deixou bem claro que seus inimigos sem Direitos Fundamentais eram os judeus, o senador americano Joseph McCarthy decidiu perseguir os comunistas (período que ficou conhecido como "terror vermelho" ou macarthismo), entre outros tantos exemplos desastrosos da presença do inimigo na história.
 
Para finalizar gostaria de citar uma frase de José Saramago que permite uma reflexão:
"Se não somos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos façamos de tudo para não viver inteiramente como animais." 


Bibliografia
JAKOBS, Günter; CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2005.
CABETTE, Eduardo Luis Santos, LOBERTO, Eduardo de Camargo. O Direito penal do inimigo. Mar/ 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11142> Acesso em 12 jun. 2010.

PLATÒN. Diálogos I. Madri: Gredos, 1985. 

CABETTE, Eduardo Luis Santos, LOBERTO, Eduardo de Camargo. O Direito penal do inimigo. Mar/ 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11142> Acesso em 12 jun. 2010.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl.O inimigo do Direito PenalTrad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

ROSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Político. Trad. Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2008.

terça-feira, 22 de março de 2011

Crimes do colarinho branco - "Lavagem" de dinheiro (Lei 9613/98)

  

Tom DeLay
Em outubro de 2005, um município do Texas acusou o deputado Tom DeLay de lavagem de dinheiro e de conspiração para violar leis eleitorais. A acusação de conspiração foi arquivada mais tarde, e desde maio de 2006 o caso aguarda a data para o julgamento. No Texas, candidatos a deputado não podem receber doações de empresas para a campanha, proposta que tem sido discutido pelo Congresso Nacional no Brasil. A promotoria alega que DeLay participou de um suposto esquema para violar esta lei e esconder as origens corporativas do dinheiro que acabou nas mãos de candidatos republicanos no Texas. O suposto esquema de lavagem envolvia o envio de doações de empresas do Texas para a sede do Comitê Nacional Republicano em Washington, que mandava o dinheiro de volta para o Texas para ser usado na campanha. Dois assessores de DeLay e seu principal contribuinte de campanha já confessaram serem culpados em dois inquéritos separados para crimes de conspiração; de fraude fiscal, de correspondência, de transferência bancária e de corrupção de funcionários públicos.


    O caso do deputado foi apenas 1 dos muitos casos famosos de "lavagem" de dinheiro, porem são muitos os casos em que o crime passa despercebido, o crescimento dos mercados financeiros e o sistema neoliberal da economia mundial tornam a "lavagem" de dinheiro mais fácil do que nunca, países com leis de sigilo bancário são diretamente ligados a países cujas leis obrigam a declaração, tornando possível depositar dinheiro "sujo" anonimamente em um país e então transferi-lo para ser usado em outro país.
  Podemos conceituar a "lavagem" de dinheiro como conjunto complexo de operações, integrado pelas fases de placement (conversão), layering (dissimulação) e integration (integração) de bens, direitos e valores obtidos direta ou indiretamente através de conduta criminosa, com a finalidade de mascarar a origem dos ativos, o agente pretende assim garantir sua impunidade e poder gastar livremente o dinheiro "sujo".
   No Brasil a "lavagem" de dinheiro é tipificada pela lei 9613/98, referida lei será objeto de estudo no presente artigo:
   Irei começar pelo bem jurídico tutelado pela norma, aqui encontramos uma divergência doutrinária:
--> Primeira posição: Tutela-se a administração da justiça, ou seja, o interesse do Estado em punir o crime antecedente.
--> Segunda posição: Tutela-se a ordem  socio-econômica, no sentido de prevenir danos ao sistema econômico financeiro nacional. Corrente majoritária na doutrina.
--> Terceira posição: Tutela-se  o mesmo bem jurídico do crime antecedente, não possui bem jurídico próprio.

   Agora vamos analisar as fases da "lavagem" de dinheiro (divisão doutrinária para melhor entendimento da operação criminosa, porem não é necessário que se efetive as 3 fases para consumar-se o crime) :
----> Fase de placement (colocação) ou conversão: nesta etapa o criminoso coloca o dinheiro sujo em uma instituição legítima, aqui ocorre a separação física do criminoso em relação ao dinheiro.
----> Fase de layering (dissimulação) ou cobertura: nesta fase os valores obtidos criminosamente que foram introduzidos no mercado financeiro na etapa anterior, passam a ser diluídos em incontáveis canais, é o envio do dinheiro através de várias transações financeiras para mudar seu formato e dificultar o rastreamento.
----> Fase de integration (integração) ou reinversão: caracteriza-se pelo emprego de artigos criminosos no sistema produtivo, o que ocorre normalmente através da criação, aquisição ou investimentos em negócios LICÍTOS. Alguns doutrinadores dizem que essa fase já não pertence propriamente a "lavagem" de dinheiro, pois os valores já estão "limpos".



   Passamos neste momento para a analise da natureza jurídica do crime em questão.
   Trata-se de um tipo penal diferido, acessório ou parasitário (nas palavras do mestre Nelson Hungria), pressupõe um crime antecedente para sua existência.
   Embora acessório, o crime de "lavagem" de dinheiro possui autonomia em relação ao crime antecedente, isto é, ainda que ignorada autoria ou inimputáveis os autores do crime antecedente,  pode haver condenação por "lavagem" de dinheiro, caso haja absolvição  do autor do crime antecedente devemos analisar o fundamento de tal decisão absolutória, se a absolvição do crime anterior se referir a inexistência ou atipicidade do fato (artigo 386 I e II), não há que se falar em "lavagem de dinheiro", nas demais hipóteses de absolvição a "lavagem" pode subsistir.
   Para finalizar o raciocínio quanto a natureza jurídica podemos dizer que para haver condenação por "lavagem" de dinheiro basta haver razoável certeza da existência de crime anterior, ainda que de modo indiciário, segundo consta no artigo 2 II da lei:
   Art. 2º O processo e julgamento dos crimes previstos nesta Lei:
  II - independem do processo e julgamento dos crimes antecedentes referidos no artigo anterior, ainda que praticados em outro país;
   Quando surgiu a tipificação do crime de "lavagem" de dinheiro era especificamente para combater a renda proveniente do tráfico ilícito de drogas, sendo assim só era "lavagem" de dinheiro quando os ativos provinham de tal conduta, é o que parte da doutrina chama de primeira geração de leis sobre o crime de "lavagem" de dinheiro.
   A chamada segunda geração ampliou o rol de crimes antecedentes, estipulando de forma taxativa ( numeros clausus ).
   A terceira geração de leis percebendo a ineficácia de se restringir o número de crimes antecedentes, passou a considerar qualquer crime como pressuposto da "lavagem" de dinheiro.
   Infelizmente a legislação Brasileira ainda está na segunda geração, pois o rol de crimes antecedentes na lei 9613/98 é taxativo, ficando de fora crimes como os contra a ordem tributária, contra a economia popular, jogo do bixo, receptação entre outros.
   Vejamos a relação de crimes pressupostos:
1 Tráfico ilícito de entorpecentes
2 Terrorismo e seu financiamento: existe uma grande discussão acerca do que seria o crime de terrorismo no Brasil, parte da doutrina diz que o crime está tipificado no artigo 20 da lei 7170/83 (lei de segurança nacional)
3 Contrabando, tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção.
4 Extorsão mediante seqüestro (artigo 159 CP)
5 Crimes contra Administração Pública: Tem prevalecido na doutrina de que será crime antecedente todo crime contra a Administração Pública, inclusive os definidos como contra a Administração da Justiça e os previstos em lei especiais, por exemplo os tipificados na lei de licitações.
6 Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional: São os definidos na lei 7492/86. 
   Aqui fica a dúvida, e os crimes previstos na lei 6385/76, isto é, artigos 27-C (Manipulação de Mercado) 27-D (Informação Privilegiada) e 27-E (Exercício Irregular de Cargo, Profissão, Atividade ou Função) ? 
    Embora não exista jurisprudência sobre o tema, a lei 6385 tutela o mercado de capitais que é um segmento do Sistema Nacional Financeiro, de modo que pode ser considerado como antecedente do crime de "lavagem" de dinheiro, é o entendimento do professor Rodrigo De Grandis.
7 Crime praticado por Organização Criminosa: Embora haja discussão acerca da  terminologia "organização criminosa", tem prevalecido no STJ o entendimento de que o termo possui definição no artigo 2 da convenção de Palermo (Decreto 5015/2004), ou seja: grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material;
8 Crime praticado por particular contra a Administração Pública Estrangeira (artigo 337-B e 337-C CP)

   Quanto ao sujeito ativo o crime de "lavagem" é comum, pode ser praticado por qualquer pessoa, até mesmo pelo autor do crime antecedente, hipótese em que haverá concurso material de crimes.
   A competência para se julgar o crime em tela é em regra da Justiça Estadual, exceto em 3 hipóteses: quando os crimes previstos na lei forem praticados contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira; quando os crimes previstos na lei forem praticados em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas; quando o crime antecedente for de competência da Justiça Federal. 
   Questão processual importante de se destacar é a não aplicação do artigo 366 do Código de Processo Penal, ou seja, se o réu citado por edital não comparecer, será este julgado a revelia, sendo assim o juiz nomeará um defensor e o processo seguirá normalmente (artigo 2º    § 2º da lei 9613/98).
   Para finalizar, é de suma importância salientar que a lei de "lavagem" prevê 2 peculiaridades no que diz respeito a apreensão de bens e valores, são elas:
----> As medidas assecuratórias serão levantadas se a ação penal não for iniciada no prazo de 120 dias contados da data em que ficar concluída a diligência.
----> Nenhum pedido de restituição será conhecido sem o comparecimento PESSOAL do acusado.
    

sexta-feira, 18 de março de 2011

Crimes do colarinho branco - Crimes contra a ordem tributária (artigo 1 e 2)

   

  Primeiramente é de suma importância analisar o aspecto criminológico dos chamados "criminosos do colarinho branco", a expressão foi usada pela primeira vez pelo sociólogo Norteamericano Edwin H. Sutherland (criador também da teoria da associação diferenciada, cujo a proposta gira em torno de que a delinqüência não é o resultado da inadaptação dos sujeitos de classe baixa, senão da aprendizagem que individuos de qualquer classe realizam de condutas e valores criminais) quando de sua exposição perante a 'American Sociological Society' em 27 de dezembro de 1939, tal expressão foi utilizada para designar (à luz de uma perspectiva subjetivo-profissional) pessoas dotadas de um "status"  social e respeitabilidade elevados, pessoas cujo os cidadãos comuns, muitas vezes até mesmo sabendo da atividade criminosa, faz questão de aparecer em fotos promocionais ao seu lado.
   Para finalizar essa pequena introdução gostaria de citar 2 máximas latinas:
   "obscurum vestis contegit ampla genus'" - com um bom traje se esconde uma má procedência.
    "plebs bene vestitum stultum putat esse peritum" - a plebe considera sábio um idiota bem vestido
 Edwin H. Sutherland
   Entre os  chamados "white collar crimes" estão principalmente o delitos econômicos, ou seja, o conjunto de infrações que atentam contra a atividade interventora e reguladora do Estado na economia, para isso criou-se o chamado Direito penal econômico.  
   Primeiramente irei listar as principais caracteristicas deste Direito penal econômico:

----> A proteção de bens jurídicos coletivos, supraindividuais ou transindividuais;

----> Vitimização difusa

----> Os tipos penais em regra são de perigo ( seja concreto, seja abstrato)

----> Os crimes são incruentos

----> Escassa visibilidade

----> "Societas delinquere potest"

    No presente estudo pretendo analisar especificamente  a lei 8137 de 1990 ( lei dos crimes contra a ordem tributaria ) e para ser mais exato os artigos 1 e 2 da lei, que tratam da sonegação de tributos.

Art. 1º Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;
III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;
IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;
V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.


Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V.

Art. 2º Constitui crime da mesma natureza:

I - fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo;
II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;
III - exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal;
IV - deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento;
V - utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é , por lei, fornecida à Fazenda Pública.
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

     Para entender o tipo penal temos que primeiramente nos aventurar no ramo do Direito tributário, é importante lembrar  de que devedor é diferente de sonegador, e vamos para uma outra diferenciação de igual relevância:
       A elisão é o fenômeno tributário por intermédio do qual o contribuinte, valendo-se de comportamentos lícitos, planeja e estrutura sua atividade empresarial de modo a reduzir ou suprimir sua carga tributária.
        Ja  a  evasão é o conjunto de procedimentos ilícitos, para que o agente não pague ou pague menos tributos, a evasão conforme o caso caracteriza o crime de sonegação fiscal do artigo 1 ou 2 da lei.
     A doutrina se utiliza de dois critérios para diferenciar elisão da evasão, o critério instrumental, segundo o qual, se o meio utilizado para não pagar o tributo é ilícito então será evasão como no caso de fraude em documentos; e o critério temporal, ou seja, leva em consideração o fato gerador do tributo, se a conduta tendente a não pagar for anterior a f.g. será elisão, se posterior haverá evasão.
       A competência para julgar os crimes em tela vai depender do tributo sonegado, se o tributo for municipal ou estadual (IPTU, ISS, ITI), ou estadual (ICMS, IPVA, ITCMD), a competência será da justiça estadual, se se tratar de tributo federal a competência será da justiça federal, nos termos do artigo 109 IV da constituição da república, lembrando que se um agente sonega tributos estaduais e federais haverá conexão, sendo assim, segundo a súmula 122 do STJ prevalecerá a competência federal, sem que haja qualquer ofensa ao pacto federativo.
      Trata-se de crime próprio, por tanto o sujeito ativo exige uma qualidade especial, sendo nesse caso a condição de contribuinte, porem o delito admite coautoria e participação de outros contribuintes ou não, como por exemplo um contador.
      No caso de tributo sonegado por pessoa jurídica, o que é mais comum e mais prejudicial para a sociedade, será responsável a pessoa física por traz da p.j. segundo consta no artigo 11 da lei:

Art. 11. Quem, de qualquer modo, inclusive por meio de pessoa jurídica, concorre para os crimes definidos nesta Lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida de sua culpabilidade

     Nesse quesito surge a questão, deve o MP nos crimes praticados por intermédio de PJ, estabelecer na denuncia, de forma expressa, a função ou o papel de cada um dos sócios?
       Uma primeira posição alega que sim, sob pena de inépcia da denuncia, pois viola a ampla defesa e o contraditório, já uma segunda posição defende que o MP pode denunciar a todos os sócios com base no contrato social, deixando a cargo da instrução penal para delinear as funções, é o que acontece nos crimes de autoria coletiva, tal denúncia é chamada por Eugenio Pacelli de denúncia geral e não se confunde com denúncia genérica, posição ao meu ver mais adequada, uma vez que não prejudica a defesa pois essa durante a instrução processual poderá afastar o dolo do agente, quando o sócio não tem poder de controle na sociedade.
    Vale lembrar que tanto o artigo 1 quanto o 2 da lei, são normas penais em branco homogênias ou em sentido amplo, pois exigem complementação de um ato normativo da mesma esfera hierarquica, como por exemplo a definição de tributo que está no CTN.
    Em relação ao procedimento administrativo-fiscal, decidiu o STF na súmula vinculante número 24:  "Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei no 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo" , ou seja, é necessária a preclusão definitiva do procedimento administrativo-fiscal para que se tipifique o crime do artigo 1, sendo essa preclusão uma condição objetiva de punibilidade, fato o qual não é necessário para a caracterização do artigo 2 da lei, já que trata-se de crime formal ou de mera conduta ( há discussão doutrinária, mas prevalece o entendimento de que se trata de crime formal).
         Agora vem o que considero o maior erro em relação a esses crimes, a lei número 9964/2000 chamada lei do REFIS (recuperação fiscal), trouxe em seu artigo 15 uma ampliação de benefícios aos sonegadores, uma vez que esses eram agraciados com uma causa extintiva de punibilidade se o débito fosse quitado até o recebimento da denuncia, a lei do REFIS acrescentou uma causa de suspensão da pretensão punitiva enquanto a PJ relacionada ao agente estiver incluída no REFIS (desde que a adesão ao programa tenha ocorrido até o recebimento da denúncia), como se não bastasse, a lei 11.941/09 (lei do REFIS da crise) trouxe uma segunda causa de suspensão da pretensão punitiva do Estado desta vez possibilitando o parcelamento da dívida do sonegador.
            Sendo assim pode o agente investir seu dinheiro sonegado fazendo com que ele renda, enquanto vai pagando as prestações com esse rendimento, concluímos por tanto que a lei fez com que "o crime compense".
            É revoltante ver que em nosso país o legislador a todo momento "invente" maneiras de beneficiar os poderosos, criminosos que através de suas condutas corrompem todo o resto da sociedade, que enfraquecem o Estado fazendo com que este tenha extrema dificuldade em cumprir seu papel principal, o de promover os Direitos Fundamentais do ser humano.